São Francisco

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O Discurso de Francisco de Assis: Paráfrase ou Polissemia

(Texto Publicado nos Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH)

Introdução

Esse texto tem como trilha principal a nossa pesquisa de doutorado que compara os Escritos de Francisco de Assis aos Sermões escritos por Antônio de Lisboa/Pádua, a fim de observar quais características principais, do itinerário proposto pelo fundador da Ordem dos Frades Menores, foram levadas em consideração na obra antoniana. Além disso, enveredaremos nesse trabalho a partir do caminho da Análise de Discurso, principalmente buscando os silêncios deixados pelo autor português em relação ao ideário do fundador. Com essa observação entenderemos, ou não, qual foi o papel do frade português na transformação/adaptação do grupo de frades aos interesses da Cúria Romana, para executar a missão de propagar a fé católica nos lugares ameaçados pelas heresias medievais.
Nossa fonte principal, nesse trabalho, são as Admoestações de São Francisco, texto esse que possui poucas análises monográficas específicas sobre ele. Quando trabalhamos com os escritos do fundador dos menores, temos que levar em conta que ele, na verdade, não os escreveu de próprio punho. Sempre contava com secretários e frades que escreviam e compilavam seus textos. Além disso, um fator importante é que textos como esse nos aproximam da figura de Francisco, pois deixam claro suas linhas principais de ação e seu ideário.
Trabalharemos essa fonte a partir dos conceitos teóricos e práticos da Análise de Discurso (AD), uma vez que segundo Eni Puccinelli Orlandi, ela tem seu ponto de apoio na reflexão que produz sobre o sujeito e o sentido, já que considera que, ao significar, o sujeito se significa. Além disso, o sentido do discurso não se encontra fixado na essência das palavras ele é determinado pela história. (ORLANDI, 1994: 54) Nesse sentido o que Frei Francisco dita em suas Admoestações não tem significado por si só. Depende dos acontecimentos que ladeiam a vida daqueles que se envolvem nesse discurso.
Ao trabalharmos com AD devemos entender que um de seus principais aspectos é sua noção de ideologia que ocorre a partir da consideração da linguagem. Nela compreende-se ideologia como “a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos”. (ORLANDI, 1999: 46) Essa ideia leva em conta que ao deparar-se com qualquer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar, isto é a buscar o sentido das palavras e das coisas. Portanto, não há interpretação sem ideologia. É ela a base para o sentido do que está exposto no discurso.
Sendo assim, sem a existência de uma ideologia, que desse sentido ao texto de Francisco, ele não teria uma relação necessária com o mundo. Fator essencial para o sentido do texto como falamos anteriormente.
Outro conceito importante é o de que esse discurso não é único em si mesmo. Ele vem de outros, não é inédito. Ao escrever seu texto o frade leva em consideração, conscientemente ou não, argumentações externas, tais como, as da Bíblia, dos Santos Padres, da liturgia da Igreja e dos grupos heterodoxos e outros que tenha tido contato.
Segundo Martín-Barbero:

(...) um discurso não é jamais uma mônada, mas o lugar de inscrição de uma prática cuja materialidade está sempre atravessada pela de outros discursos e outras práticas. Intertextualidade diz, nesse caso, não só das diferentes dimensões que num discurso fazem visível e analisável a presença e o trabalho de outros textos, [...] mas diz, também, da materialização no discurso de uma sociedade e de uma história. (MARTÍN-BARBERO, 1978: 137)

Essa “materialização no discurso de uma sociedade e de uma história” é análogo ao que em AD simboliza o interdiscurso: grupo de proposições constituídas ao longo dos tempos, adormecidas, mas vivas na “memória” social, que definem o que pensamos, dizemos e fazemos.
Sendo assim, Quando tratamos de memória na AD, falamos de interdiscurso, isto é, tudo já dito em outros lugares, independentemente, já esquecido, e que define o que dizemos. “Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso...”. (ORLANDI, 1999: 39)
No nosso caso então, será que tudo o que está no discurso de Francisco já foi dito? Nada é novidade? Obviamente que não. Na verdade durante a produção de um discurso ocorre uma tensão entre a repetição e a inovação. Isso é, entre a paráfrase e a polissemia. Os processos parafrásicos funcionam como uma memória institucionalizada, na verdade um arquivo, que proporciona a estabilização. Além disso, ela “é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo”. (ORLANDI, 1999: 38)
Já a polissemia proporciona a inovação, pois é baseada no que está esquecido, permitindo assim, a ruptura nos processos de significação. Ela está ligada a criatividade ao rompimento, surgimento do diferente, “pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer”. (ORLANDI, 1999: 38)
Diante do exposto acima, queremos nesse ensaio observar as inovações e as repetições no discurso exortativo de Francisco de Assis. Realizaremos essa tarefa nas cinco primeiras admoestações. Não existe um critério científico para tal corte a não ser a impossibilidade de tratar numa comunicação das 28 exortações. Por isso definimos de forma aleatória nossa análise.

Apresentação do Texto

As Admoestações são assim nomeadas, graças a serem denominadas como tal nos textos latinos e nas edições em línguas vernáculas. Essa palavra é expressa pelos verbos latinos moneo e admoneo, e pelo substantivo admonitio, que em linhas gerais são sinônimos de exortar/exortação e corrigir/correção. Esses termos que significam admoestar são usados nos escritos de Francisco como uma ação (moneo), ou o resultado dessa ação (admonitio).
Sendo assim, o Assisense encarava o termo admoestação como um forma de pregação pessoal, que tinha como objetivo a instrução, de conforto, e sustento. Essas admoestações são encontradas em mais de um texto franciscano como, por exemplo, na Regra Bulada e na Regra não bulada. Elas tem o significado “pedagógico-salvífico” e quem a pronuncia é o responsável pela animação da fé e da vida dos frades da comunidade franciscana. Esses textos são um modo de educar, servem de recurso pastoral de controle, uma pregação qualificada como uma exortação pastoral, orientação àqueles que andavam segundo a carne, além de incitar aos frades a seguirem firmes na fé , na vocação e retamente o Evangelho.
Porém, como já exposto acima, existe entre os escritos de Francisco um texto com o título específico de Admoestações. Esse escrito, composto por vinte e oito textos exortativos, traz em seu bojo a dimensão total do projeto educacional que Francisco queria implementar para salvar a sua alma. Eles foram proferidos pelo Poverello, para instruir aos irmãos, sem data e em circunstância exata. (MOTA, 1998: 99) Consensualmente os teóricos aceitam a ideia de que foram reunidos pela primeira geração franciscana, quando Francisco ainda era vivo, porém sem data nem local definido.
Quanto a sua autenticidade não se costuma discutir, pois são textos que estão presentes tanto nas obras de Tomás de Celano, quanto nas de Boaventura e atestadas por manuscritos em abundância. Além disso, os códices que o transmitiram o fizeram antes ou ao mesmo tempo em que os outros textos mais confiáveis, tendo o estilo, modo associativo de pensar e falar caros e familiares a Francisco. (MOTA, 1998: 99)
Para Paul Sabatier podem ter sido fragmentos da Regra de 1221 postos de lado, para não alongar mais o texto. (MOTA, 1998: 99) Outros estudiosos, também o enquadram na categoria de textos legislativos, apontando-os como acréscimo ou explicação adicional a essa Regra. (SILVEIRA-REIS, 1996: 59)
Caetano Esser afirma que o texto apresenta reflexões teológicas que se voltam para a vida concreta da Ordem dos Frades Menores, onde se revela o mistério da pobreza na qual se imitava humanamente a renúncia de Cristo. (ESSER, 1976: 10)
Martino Conti afirma que:

As admoestações de São Francisco pertencem ao gênero literário sapiencial-exortativo com finalidade pedagógico-salvífico. Ao lançar mão deste gênero literário, comum à literatura sapiencial do Antigo Testamento, às Palavras do Senhor e aos Ditos dos Padres do Deserto, São Francisco tem consciência de ser mestre de vida espiritual, isto é educador da fraternidade franciscana e, como tal, age com toda simplicidade. (CAROLI, 1999:23)

Segundo esse autor Francisco era um educador da Cristandade que usa a forma discursiva tradicional, juntamente com um conteúdo preso às particularidades Medievais.
Sendo Assim, vamos mergulhar no texto para ver que lições são essas e o que trazem de novidade para os frades e todos aqueles que as ouviram sendo proferidas por Francisco.

Análise do Texto

Na primeira Admoestação (Adm 1), a mais longa de todas, Francisco iniciou sua argumentação tomando como base o capítulo quatorze, versículos do seis ao nove do Evangelho de João, evangelista predominante nessa admoestação. Esse texto bíblico é o que lhe confere autoridade para suas argumentações, ressaltando que a Adm 1 é a que tem maior quantidade de referências bíblicas. Vemos aqui uma característica na obra de Francisco, a relação sincrônica do seu discurso com os textos bíblicos que utilizou.
Nessa admoestação fica definido que, para o fundador, cristão era o crente subordinado a Deus, subordinação esta simbolizada pelo Eucaristia.
A questão principal, aqui, era a dupla natureza de Cristo expressa no dogma da transubstanciação, ocorrido no rito eucarístico. Quem comungava aceitava a Cristo, ao mesmo tempo humano e divino. Isso o fazia entrar no grupo de pessoas que são subordinadas a Deus. Notamos então, que nesse texto o batismo, considerado pela Igreja o sacramento de inscrição na comunidade de fiéis, ficava em segundo plano.
Para Francisco a participação na mesa da eucaristia conferia ao fiel a salvação da alma. Pois, esse ritual, manifestava o sagrado através do pão e do vinho, sendo que isso só o era possível por intermédio do sacerdote. Essa ideia é uma novidade. Pois, apesar do batismo ser um sacramento fundamental, não era, obrigatoriamente, ministrado por um sacerdote.
Para Conti, esta seria uma instrução reorientando aqueles que andavam segundo a carne, a fim de que caminhassem segundo o espírito. Pois, só conseguiriam entender essa manifestação se passassem a observar o mundo com os olhos do espírito.(CONTI, 2004:35)
O Poverello orientou aos que não criam no rito eucarístico, particularmente na transubstanciação, a aceitarem a eucaristia naquilo que ela simbolizava aos olhos de Francisco: a repetição de um ato de humilhação de Jesus, que nasceu homem e proporcionou a salvação do homem se este reconhecesse o amor de Cristo por meio de um rito que simbolizava a descida do divino na carne, isto é, repetição simbólica do significado do nascimento de Cristo.
Martino Conti (CONTI, 2004:29) destaca que estava ocorrendo uma “Cruzada Eucarística” cujos debates entre eclesiásticos eram intensos e fervorosos. Seu texto relaciona-se com outros da época. Este cenário de ampla discussão diz respeito aos grupos religiosos laicos que contestavam os comportamentos de parte do clero, acusado de não ser digno do cargo que ocupavam. O que realmente tem fundamento se observarmos que o batismo não é tão combatido quanto à eucaristia.
Muitos estudiosos apontam os cátaros como o enunciatário principal, pois negavam a transubstanciação, para eles o tal sacramento não existia. Em Assis existiram grupos de cátaros que certamente interagiram com Francisco e seu grupo. Contudo a questão eucarística encobre uma discussão mais profunda e enraizada na sociedade ocidental: o conceito de dualidade. Os cátaros, segundo fontes ligadas a Igreja, eram maniqueístas, pois acreditavam existir dois princípios iguais e opostos o Bem o Mal. O material, inclusive o corpo humano é criação do Mal e deve ser combatido pelo Bem.
Hoje, porém, já podemos observar, a partir de estudos mais recentes, que há uma diferença entre os cátaros e os maniqueístas, pois entre os primeiros havia uma hierarquia dos princípios do Bem e do Mal. Eles não tinham a mesma força e o Bem estava acima do Mal.
Na segunda admoestação (Adm.2) Francisco identificou o livre-arbítrio e a soberba com os bens que o homem usufrui, mas que são de propriedade de Deus, como qualidades negativas, mas inerentes a Adão. Isto é faziam parte do corpo, da matéria.
Francisco de Assis possuia uma lógica ligada a dualidade: o corpo tende a vícios e erros, mas a alma podia controlá-lo, combater seus vícios e educá-lo. A grande diferença entre ele e os cátaros não era essa questão, mas a participação no rito da eucaristia. Porém, Francisco os instruiu sobre isso, afirmando que a transubstanciação está condicionada a função sacerdotal. Para ele a aceitação do rito e sua compreensão são o significado do aceitar ser cristão, principalmente para seus irmãos. Por isso é importante para ele as afirmações anteriores sobre a eucaristia. Elas marcam a diferença entre o seu grupo e o heterodoxo.
A aliança entre Deus e os homens implica na obediência à Deus. O direito a salvação perpassa pela obediência ao Senhor de tudo e de todos, subordinando-lhe o livre-arbítrio e o mérito das coisas que fazemos. Nas admoestações 2, 3 e 4 o fundador esclarece o que para ele é obediência e o que significa ser obediente na prática diária. Essa visão não é uma novidade ela já está dentro do que poderíamos chamar de paráfrase.
Então porque o homem devia obediência a Deus? A Adm 2 trata disso. Cada homem deveria se redimir da herança deixada por Adão em seus atos de soberba e desobediência. Para isso deveria abandonar sua vontade própria e o orgulho de si. Teria que se despojar de todo o interior abandonando os méritos do bem que se fazia. O ser obediente era o mesmo que ser pobre, comportando-se humildemente. A obediência levava a renúncia do eu e a transformação do homem em instrumento de Deus, como meio de alcançar a salvação e ficar livre da angústia.
Nesse momento, o Poverello não tinha como alvo a estrutura eclesiástica. Não tratava-se de uma crítica a Igreja Romana. O que queria afirmar era que a obediência era a expressão da pobreza interior. Pois, segundo ele, a obediência a Cristo conduzia a obediência à Igreja como representante de Deus. Apesar de a obediência ser uma prática comum, a novidade estava na forma como se deveria alcançar essa obediência. A pobreza interior apesar de estar incutida no discurso cristão era uma prática que não era valorizada pela Igreja até o século XIII.
Para o frade o pecado da desobediência nascia em cada homem, ideia que condiz com a concepção dual do corpo e alma que ele apresentava, pois o pecado está no corpo, cabendo à alma combater o corpo, combater os vícios através da prática das virtudes. Quem obedecia a Cristo obedecia a Deus, subordinava-se a ele, deveria seguir um comportamento que viabilizasse o controle da vontade própria.
Na Adm 3 o autor afirma que o religioso deveria ser obediente ao seu superior. Deveria negar o seu eu, vendo no outro a imagem de Deus. Já na Adm 4 ele inverteu a orientação e orientou ao superior no que tange ao exercício do poder e da autoridade.
Segundo Caetano Esser:
Ao principio bastava a sua presença. Ele era sim, mais o pai e o mestre, o orientador e o superior, mas quando a multidão dos frades cresceu, tornaram-se necessários para os vários grupos, superiores que fossem responsáveis de tudo. Vemos como Francisco não ignorou esta necessidade da vida humana. A sua grande preocupação, porém, é que este ofício fique ordenado ao espírito da comunidade”. (ESSER, 1976: 81)

Fica claro, então, que essa admoestação foi feita quando Francisco já não podia acompanhar tão de perto seus irmãos, devido o crescimento do grupo. Essa situação trouxe certa confusão, pois sua ausência acabava sendo preenchida pelo que se ouvia dizer ou se lembrava de sua fala. Isso, também, facilitou a influência das ideias de muitos religiosos que possuíam outros costumes e hábitos, distorcendo os princípios praticados e exortados por ele.
Os superiores franciscanos deveriam ser humildes no tratamento do outro. Pois, para ele só existem superiores devido a uma necessidade funcional. Tanto que a ideia de minoridade surge como contrariedade a hierarquização da sociedade e da Igreja, apresentando uma aspiração igualitária nivelada por baixo. Outra novidade, ou seja, mais uma polissemia do discurso franciscano. Sabemos que esquecido no interior do discurso cristão estava a ideia de fraternidade universal. Porém, como dito acima, no século XIII, isso era uma utopia, tanto na Igreja como na sociedade.
Na Adm 5 Francisco afirmava que a pobreza exterior poderia conduzir a um orgulho de si, isso poderia levar o corpo ao vício de se ser pobre só materialmente. Além disso, ele condenava aos homens de saber, por acreditarem serem superiores aos outros. Para ele o conhecimento não atribuía nenhum valor ao homem, isto é, não é algo que valorizava o homem diante de Deus, pois tudo era propriedade dele. O saber era algo que Deus proporcionava para que o homem agisse como instrumento de sua graça.
Seu raciocínio levava em conta que a beleza, a riqueza e o conhecimento eram dons de Deus, e não deveriam ser utilizados como critérios para julgar e apreciar os homens, mas sim como algo usado pelos homens para a glória de Deus.
Para o fundador a raiz do orgulho é o egoísmo. Pois o comportamento ideal é a pobreza e a humildade para com o pecador, ou seja, comportar-se como um pobre de espírito.

Conclusão

Através dos trabalhos de diversos estudiosos, muitos deles reconhecidos mundialmente, como Jacques Le Goff, sabemos que Francisco de Assis inaugurou, dentro da sociedade Ocidental Medieval, uma forma de viver a fé Cristã que foi avassaladora. Milhares de pessoas, rapidamente, passaram a comungar de suas ideias e aderiram ao seu ideário de vida, quer entre os Frades Menores, quer entre as Damianitas ou, ainda, entre os irmãos a Ordem Terceira da Penitência.
Porém, através de estudos realizados dentro do âmbito da Análise de Discurso, entendemos que os discursos não são inéditos, sempre partem de outros. O que não quer dizer que esses não apresentem novidades, ou como chamamos inovações. O que não foi diferente no caso do Poverello de Assis.
Apesar de no século XIII, ser considerado uma grande novidade, sabemos que o discurso franciscano é um continuum do discurso evangélico, mas que vai dar uma nova roupagem ao discurso institucional eclesiástico da Igreja Romana.
Para demonstrar o que afirmamos agora, redigimos um trabalho que procurou, a partir de cinco exortações da obra Admoestações de Francisco, mostrar se houveram inovações trazidas por seu discurso.
Constatamos, então, que o fundador dos Menores, inovou ao tratar a eucaristia como o sacramento que realmente inscrevia o crente no grupo de cristãos, deixando de lado o batismo. Além disso, trouxe à tona a ideia de que a pobreza interior era fundamental para que a obediência à Deus e consequentemente a Igreja pudessem acontecer plenamente. E por último transmitiu o valor da fraternidade universal, rompendo com a estrutura social do Medievo e revalorizando tal princípio cristão.
Apesar de alguns estudiosos acharem que ele queria travar uma discussão tanto com os cátaros como com a Igreja, chegamos a conclusão que não. Francisco primeiro tentou através de seu discurso, deixar claro suas propostas, a fim evitar que os Pobres de Assis, fossem confundidos com os grupos heterodoxos. Assim como tenta retirar ou evitar que adentrem ao interior de suas fileiras adeptos do catarismo. Isso fica claro ao conduzir sua discussão sobre a eucaristia, pois apesar de aceitar a ideia dualista de que o corpo é o canal do pecado, ele deixa clara a importância da Igreja como canal das graças de Deus.
Tratando da questão da pobreza interior, a ligação que faz dela o caminho para a obediência a Deus e a Igreja, é uma saída para o lugar comum dos grupos heréticos. Apesar de seu modo de vida ser uma crítica à instituição, Francisco não quer instrumentalizá-la para isso. Ele a transforma em uma maneira de ser fiel a ela. Pois, quem é pobre interiormente se entrega nas mãos de Deus e por isso, não debate sobre a situação da Igreja. Na verdade vê nela a presença de Deus.
Quanto a instituição de uma fraternidade universal, essa é realmente uma grande novidade. Podemos notar que nas ordens religiosas existentes até o XIII, a hierarquia é uma forma de viver o projeto de Cristo. Para Francisco não. A hierarquização gera injustiça. Não deixa o Amor fluir. Nesse ponto ele não se preocupa com o enfrentamento com a Igreja e nem com a sociedade. O Amor é fundamental em seu projeto e ponto final. Não merece maquiagens e nem pode ter medo de nada.

Bibliografia

ADMOESTAÇÃO. In: Dicionário Franciscano. Petrópolis : Vozes, 1999.
CONTI, Martino Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis : Vozes, 2004.
Escritos de São Francisco. Editorial Franciscana. http://www.editorialfranciscana.org/files/_Escritos_4aef8457d0054.pdf. Acesso em 14/10/2012.
ESSER, Caetano. As Exortações de Francisco de Assis. Braga : Editorial Franciscana, 1976.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicación masiva: discurso y poder. Quito: Editora Época, 1978.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
________. Discurso, Imaginário Social e Conhecimento. No site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, endereço http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/911/817. Acesso em 14/10/2012.
SILVEIRA, I. Frei; REIS, O. dos. (Org.). São Francisco de Assis: escritos e biografias de São Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 7. ed. Petrópolis : Vozes, 1996.






















ANEXO


ADMOESTAÇÔES


Adm 1 - O CORPO DO SENHOR

1 Diz o Senhor Jesus a seus discípulos: Eu sou caminho, verdade e vida; nin guém vai ao Pai se não por mim.
2 Se conhecesses a mim, também conheceríeis certa mente meu Pai; e desde agora o conheceis e o vistes.
3 Diz-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e basta para nós.
4 Diz-lhe Jesus: Tanto tempo estou con vosco e não me conhecestes? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai (cf. Jo 14,6-9).
5 O Pai habita a luz inacessível (cf. 1Tm 6,16), e Deus é espírito (Jo 4,24), e a Deus nunca ninguém viu (Jo 1,18).
6 Por isso não pode ser visto senão em espírito, porque é o espírito que vivifica; a carne não adianta nada (Jo 6,64).
7 Mas nem o Filho, no que é igual ao Pai, é visto por al guém diferentemente do Pai, diferen temente do Espírito Santo.
8 Por isso todos os que viram o Senhor Je sus segundo a humanidade e não viram e creram segundo o espírito e a di vindade que ele era o verdadeiro Filho de Deus, foram condenados;
9 assim também agora todos os que vêm o sacramento que se consagra pelas palavras do Senhor sobre o altar por mão do sacerdote na forma de pão e vinho, e não vêem e crêem segundo o espírito e a di vindade, que é verdadeira mente o santíssimo corpo e sangue de nos so Senhor Jesus Cristo, foram condenados,
10 pelo testemunho do próprio Altíssimo, que diz: Este é meu corpo e meu sangue do Novo Testamento [que será derramado por muitos] (Mc 14,22,24) e:
11 Quem co me a minha carne e bebe o meu san gue, tem a vida eterna (cf. Jo 6,55).
12 Por isso o espírito do Senhor, que mora em seus fiéis, é quem recebe o san tíssimo corpo e sangue do Senhor.
13 Todos os outros, que não têm o mesmo espírito e presumem recebê-lo, comem e bebem a própria conde nação (cfr. 1Cor 11,29).
14 Por isso: Filhos dos homens, até quando tereis um coração pe sado? (Sl 4,3).
15 Por que não conheceis a ver dade e credes no Filho de Deus? (cfr. Jo 9,35).
16 Eis que se humilha diariamente, como quando veio do trono real (Sb 18, 15) ao útero da Virgem;
17 vem diariamente a nós ele mesmo aparecendo humilde;
18 des ce todos os dias do seio do Pai (cfr. Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote.
19 E como se mostrou aos santos após tolos em carne verdadeira, assim também a nós agora no pão sagrado.
20 E como eles com a visão de sua carne só viam a carne dele, mas criam que era Deus contemplan do com olhos espirituais;
21 assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corpo rais, vejamos e creiamos firmemente que é seu santíssimo corpo e sangue vivo e verda deiro.
22 E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século  (cf. Mt 28,20).

Adm 2 - O MAL DA VONTADE PRÓPRIA

1 Disse o Senhor a Adão: Come de toda árvore, mas da árvore do bem e do mal não comas (cf. Gn 2,16-17).
2 Podia comer de toda árvore do pa raíso porque, enquanto não foi contra a obediência, não pecou.
3 Pois come da ár vore da ciência do bem aquele que se apro pria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor diz e opera nele;
4 e assim, por sugestão do diabo e por trans gressão do mandamento, tornou-se pomo da ciên cia do mal.
5 Por isso precisa sofrer a pena.

Adm 3 - A OBEDIÊNCIA PERFEITA

1 Diz o Senhor no Evangelho: Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33); e:
2 Quem quiser salvar sua alma, vai perdê-la (Lc 9,24).
3 Deixa tudo que possui e perde seu corpo o homem que se entrega inteiro à obediência, nas mãos de seu prelado.
4 E tudo que faz e diz, que saiba que não é contra sua vontade, se é bom o que faz, é verdadeira obediência.
5 E se alguma vez o súdito vê coisas melhores e mais úteis para sua alma que as que lhe ordena o pre lado, sacrifique as suas volunta riamente a Deus, e trate de cumprir com o bras as coi sas que são do prelado.
6 Pois essa é a obediência caritativa (cf. 1Pd 1,22), que sa tisfaz a Deus e ao próximo.
7 Mas se o prelado ordenar alguma coisa contra a sua alma, ainda que não lhe obedeça, todavia não se separe dele.
8 E se por isso sofrer perseguição de al guns, ame-os mais por Deus.
9 Pois o que prefere so frer perseguição a separar-se de seus irmãos, permanece de verdade na obe diência perfeita, porque dá sua vida (cf. Jo 15, 13) por seus irmãos.
10 Pois há muitos religio sos que, com a desculpa de que vêem coi sas melhores do que as mandadas por seus pre lados, olham para trás (cf. Lc 9,62) e voltam ao vômito (cf. Pr 26,11; 2Pd 2,22) da própria vontade;
11 estes são homicidas e, por seus maus exemplos, põem a perder muitas al mas.


Adm 4 - QUE NINGUÉM SE APROPRIE DA PRELATURA

1 Não vim para ser servido mas para ser vir (cf. Mt 20,28), diz o Senhor.
2 Os que estão constituídos sobre os ou tros, gloriem-se dessa prelatura como se ti vessem sido encarregados do ofício de lavar os pés dos irmãos.
3 E quanto mais se pertur bam por lhes tirarem a prelatura do que por lhes tirarem o ofício de lavar pés, tanto mais acumulam bolsas para o perigo da alma.

Adm 5 - QUE NINGUÉM SE ENSOBERBEÇA MAS SE GLORIE NA CRUZ DO SENHOR

1 Considera, ó homem, em que grande excelência te pôs o Senhor Deus, porque te criou e formou à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo e à sua semelhança segundo o espírito (cf. Gn 1,26).
2 E todas as criaturas que há sob o céu, a seu modo servem, conhe cem e obe decem seu Criador melhor do que tu.
3 E mesmo os demônios não o crucifi caram mas tu com eles o crucificaste e ainda crucificas, deleitando-te em vícios e pecados.
4 De quê, então, podes gloriar-te?
5 Pois se fosses tão sutil e sábio que ti vesses toda a ciência (cf. 1Cor 13,2) e soubesses interpretar toda espécie de lín guas (cf. 1Cor 12,28) e investigar subtilmente sobre as coi sas celestes, não podes glo riar-te em todas essas coisas;
6 porque um só demônio sabia as coi sas do céu e ainda sabe as da terra mais que to dos os homens, ainda que hou vesse algum que tivesse recebido do Senhor um conheci mento especial de suma sabe doria.
7 Do mesmo jeito, se fosses mais bonito e mais rico do que todos e mesmo que fizesses maravilhas, espantando demônios, tudo isso te é contrá rio, e nada te pertence e de nada podes gloriar-te;
8 mas disto podemos gloriar-nos: de nossas fra quezas (cf. 2Cor 12,5) e de carregar todos os dias a santa cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Lc 14,27).