São Francisco

sábado, 8 de novembro de 2014

Participação no programa Cabeça pra Cima, Rede Boas Novas



Participei do debate sobre mudanças na política brasileira após as passeatas de junho de 2013. Espero que gostem do programa. Paz e bem!


sábado, 30 de agosto de 2014

A construção do modelo do “Religioso Ideal” no discurso de Antônio de Lisboa/Pádua em sua obra “Os Sermões”

Neste trabalho1 vamos apresentar uma análise do religioso ideal presente no discurso de Antônio de Pádua/Lisboa e que, para nós, foi reflexo das decisões tomadas pelo IV Concílio de Latrão, realizado em 1215.
O IV Concílio de Latrão foi o mais importante concílio da Igreja Romana medieval e teve como principal marca a busca de um maior controle moral, social e doutrinário, por parte da instituição, em relação a seus
membros. Na procura de uma maior efetivação destas decisões, a Igreja institui a obrigatoriedade de certos sacramentos e normatizou a vida dos religiosos de modo geral.
Nosso trabalho tem como objetivo, portanto, comparar a obra de Antônio com os cânones do IV Concílio de Latrão, para demonstrar que este ideário estava em harmonia com o pensamento da Sé de Roma.
Objetivamos encontrar pontos comuns que nos façam observar o que ele entende como ideal para a vida dos religiosos e qual a influência da Igreja neste pensamento, para tal analisaremos os Decretos do IV Concílio de Latrão2 e a obra Sermões, que foi escrita entre 1223 e 1227.3
Virgílio Gamboso4 estudioso responsável pela edição crítica da “Legenda Assídua”, que é considerada, pelos estudiosos da vida de Antônio, como a hagiografia mais importante sobre este homem, 5 informa-nos que Antônio nasceu em Lisboa no ano de 1190.
Com o nome de Fernando, iniciou os seus estudos na escola junto a catedral de sua cidade natal. Depois foi para o Mosteiro de São Vicente de Fora, onde ingressou na Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho e de onde pediu transferência, por estar próximo de sua cidade e não conseguir manter um certo isolamento para desenvolver seus propósitos religiosos, indo para o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Em Coimbra, então capital do reino, estava uma das mais importantes bibliotecas de Portugal, onde certamente Antônio adquiriu grande parte de seu conhecimento e teve contato com obras de Agostinho, Jerônimo, Ambrósio, entre outros. Neste importante estabelecimento de ensino encontravam-se alguns mestres formados em Paris,6 que com certeza foram os responsáveis pela formação intelectual pautada no itinerário evangélico que é uma das fortes características de sua obra.
Porém, Antônio não pôde colocar em prática todos os ensinamentos armazenados através de seus estudos, pois tal estabelecimento encontrava-se contaminado por idéias e práticas tais como o nicolaísmo e simonia, que não se coadunavam a vida religiosa.
Também em Coimbra, frei Antônio desfrutou de um pequeno convívio com os primeiros mártires franciscanos antes de sua viagem ao Marrocos, local onde ocorre o martírio. Com o retorno dos restos mortais que vieram a ser enterrados na Catedral de Santa Cruz, notou, então, que esta forma de viver a fé estava muito distante da realidade encontrada em tal mosteiro e ficou maravilhado com o novo modo de vida oferecido pela Ordem dos Frades Menores e pela possibilidade de pregar aos sarracenos e
ser martirizado. A ida ao Marrocos foi para Antônio a principal Condição para a sua saída da ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho e sua entrada para os franciscanos. Francisco da Gama Caeiro,7 grande estudioso da vida e da obra de Antônio, escreve que este foi influenciado por três principais aspectos da vida dos frades menores. Primeiro, o estilo de vida, que era totalmente voltado para a pobreza evangélica procurando imitar o Cristo nu. Segundo, o modo de pregação, que tinha como principal
característica à ida ao encontro das almas, modo diferente do apostolado da ordem dos Cônegos Agostinianos, que ocupavam paróquias determinadas. Por último, a pregação aos muçulmanos que, indiretamente, poderia ocasionar o martírio.
Esta característica, a pregação aos infiéis, é tão forte no ideário franciscano que é citada na “Regra Não-Bulada”,8 que ficou pronta em 1221 e é um misto de Regra e “diretório espiritual”, pois contém muitas
orientações de cunho espiritual e não jurídicos, e foi apresentada aos irmãos no Capítulo de Pentecostes de 1221.
Após uma tentativa frustrada de martírio, Antônio participa do Capítulo acima citado, onde é designado para trabalhar no Eremitério de Monte Paolo em Forli. Este local realmente torna-se importante na vida
franciscana de Antônio, pois lá ele passou a ser notado como um exímio pregador e conhecedor das Sagradas Escrituras. Antônio foi indicado, por seu superior, a proferir uma pregação repentina em uma data festiva. Até então ele havia servido apenas para ministrar os sacramentos, uma vez que era sacerdote, e trabalhava como ajudante de cozinha. O seu discurso de improviso é tão bem construído que maravilha a todos. A partir daí Antônio é colocado na linha de frente da Batalha contra as heresias que assolavam a
região e sua fama chega até os ouvidos de Francisco que, neste momento, o indica como mestre de teologia da ordem através da seguinte carta:

A frei Antônio, meu bispo, saúda frei Francisco e augurasaúde. Apraz-me que ensine teologia aos nossos frades, sob aCondição, porém que por causa de tal estudo, não se extinganeles o espírito da santa oração e devoção, como é prescritona Regra. Passa bem.9

Santo Antônio e São Francisco

Esta Carta de Francisco a Antônio é o documento que nos informa que a notoriedade de excelente pregador que era imputada a Antônio já havia chegado naquele momento ao conhecimento do fundador dos menores. Mas o que mais nos chama a atenção em tal documento é que ele foi um marco na trajetória da Ordem, pois, até então os frades pregavam através do exemplo e, na maioria dos casos, com um conhecimento rudimentar das Sagradas Escrituras. Com esta nomeação feita por Francisco, Antônio
tornou-se uma figura central nesta nova etapa que os franciscanos passariam a viver.
O que Francisco, até então temeroso com o ensino de Teologia na ordem, viu neste novo frade? As hagiografias do sacerdote português ajudamos a sanar estas dúvidas. Pois fica claro que se sua importância como pregador chegou até Francisco, sua notoriedade como homem humilde e vivedor da Pobreza, principal elemento que, para o fundador, era considerado essencial para o alcance das Virtudes de Deus, deve ter chegado também.
A partir desta autorização, Antônio, que já era sacerdote e pregava para combater os cátaros no Sul da França e Norte da Itália, passou a ensinar Teologia e criou vários centros de ensino franciscanos.
Utilizando toda a bagagem intelectual adquirida no estabelecimento de ensino dos agostinianos, o frei também escreveu a sua obra Sermões, que é uma compilação de vários sermões e que, segundo o próprio autor, foi realizada “para a honra de Deus, edificação das almas e consolação tanto dos leitores como dos ouvintes, e que a tal fora compelido pelos rogos e caridade dos seus confrades”,10 visando satisfazer um desejo de seus próprios alunos, que o pediam para redigir uma espécie de manual para preparação de
pregadores.
Esta obra possui objetivos religiosos e morais, constituindo-se numa tentativa de dispor os irmãos franciscanos de um instrumento de trabalho apostólico para auxilio na função de pregação. Já neste detalhe pode-se observar a obediência do autor às diretrizes da Igreja, pois segundo o cânone 10 do Concílio de Latrão IV, a Igreja preocupava-se com a preparação dos pregadores que deveriam ser “...pessoas capacitadas, ricas em obras e palavras”.
Estes sermões apresentam, em sua estruturação, o modelo corrente na época, sendo constituído por tema, protema, divisão, explanação e conclusão. Esta obra tem como alicerce, assim como praticamente toda a
produção de Antônio, a Bíblia que, para ele, era a produtora da “verdadeira ciência”. Os livros bíblicos são comentados nos sermões tendo como ferramenta principal os escritos dos Santos Padres. Além de ser a base para a construção do discurso de Antônio, as Sagradas Escrituras foram a fonte de inspiração do teólogo para a criação de alegorias que elucidam a necessidade da prática das virtudes que se constituíam, para ele, de suma importância para o fortalecimento da Igreja e da expansão da mensagem de salvação.
Ao analisarmos esta obra, podemos observar uma forte preocupação de Antônio com a postura e o modo de vida dos sacerdotes, pregadores e prelados. Para este frei, o modo como estes homens viviam refletia na forma como a Igreja, isto é, os fiéis, se comportariam e vivenciariam a fé.
Ainda em Portugal Frei Antônio defrontou-se com várias práticas que a Igreja passou a condenar de forma mais enérgica, a partir do Concílio citado à cima. Nossa análise da obra antoniana nos mostrará que o frade
conhecia muito bem as práticas simoníacas e nicolaístas dos religiosos e as combateu através de seus escritos.
Antônio, talvez por ser um sacerdote formado em um mosteiro agostiniano, ou por estar zeloso das ordens romanas, preocupou-se principalmente com a formação intelectual e moral dos clérigos. Neste sentido, no sermão do 4º Domingo de Pentecostes, ele diz, ao analisar a passagem bíblica “Pode porventura um cego guiar outro cego?” (LC. 6, 40), que “O cego é o prelado ou o sacerdote perverso, privado da luz da vida e da ciência”. Temos então, a partir desta constatação, o primeiro item para a recriação de um modelo sacerdotal na obra antoniana. Os sacerdotes devem estar preparados intelectualmente para a transmissão correta da Palavra de Deus, preocupação que está diretamente ligada à experiência pessoal do frei como combatente das heresias, tarefa que lhe exigiu um grande conhecimento teológico.
Esta preocupação esta em consonância com as da Igreja. No cânone lateranense de número 11, orienta-se os bispos a preocupar-se com esta preparação dos sacerdotes, contratando mestres em teologia para ensiná-los a leitura da Sagrada Escritura e orientá-los sobre o ministério pastoral.
No cânone 27, por exemplo, o cuidado com o grau de instrução dos novos religiosos é tão grande, que existe uma orientação para não ordernar-se pessoas ignorantes e rústicas para o governo pastoral, sob a
ameaça de duras penas aos bispos que assim procedessem. Igual temática encontramos no cânone 10 que orienta aos bispos a procurarem, diante do impedimento dos mesmos de praticarem o ofício da pregação, “pessoas capacitadas, ricas em obras e palavras”.
No mesmo sermão em análise, Antônio afirma que “a embriaguez rouba o sentido”, o que está de acordo com o cânone 13, que repreende os sacerdotes que se entregam à bebedeira e, por isso, podem “perder o espírito e aderir a paixões carnais”.
Frei Antônio deixa bem claro que a função do religioso é a orientação espiritual de seus fiéis, e censura o excessivo cuidado que eles têm para com os bens materiais em várias passagens de sua obra. A simonia, por exemplo, é, dentro deste âmbito das preocupações com as coisas terrenas, uma prática condenada pela Igreja e que, segundo Antônio, deixa o sacerdote desabilitado a prestar os seus serviços espirituais, pois
Todo aquele que vender ou der o espiritual ou anexo aoespiritual por oração ou dinheiro, por palavra ou dom, porpromessa ou oferta, por temor ou amor terno ou carnal, ésimoníaco, e não pode salvar-se, a não ser que renuncie efaça verdadeira penitência.11
Antônio escreve que: “vendem bois os que não pregam por amor de Deus, mas por lucro temporal”. Esta idéia também figura nos cânone 63, 64, 65 e 66 dos decretos do Concílio, que chama esta prática de corrupção e ordena que nada pode ser pedido em troca da consagração dos bispos, a benção dos abades, a ordenação dos clérigos, a entrada de irmãs nos mosteiros, a nomeação de párocos, a sepultura dos mortos e a benção aos parentes. Podemos observar, portanto, que o religioso Ideal, para o teólogo, tem que ser honesto e fiel ‘a sua missão espiritual, que é ministrar os sacramentos sem cobrar ou exigir nada em troca, preocupando-se simplesmente em ser um transmissor das graças divinas.
Outro exemplo desta sua preocupação e de sua total aderência aos planos do Concílio está no trecho em que ele exemplifica, condenando todos os mais importantes religiosos da hierarquia da Igreja, dizendo que:
...Jesus Cristo, hoje é vendido por negociantes Arcebispos e
Bispos e demais prelados da Igreja. Correm por aqui e por
acolá, compram, vendem e revendem a verdade com
mentiras e oprimem a justiça com simonias. Os bufaneiros
são os abades os priores hipócritas e os falsos religiosos, que
vendem pelo dinheiro do louvor humano as falsas
mercadorias da santidade alheia, sob pretexto da religião, na
praça da vaidade mundana.12
Antônio coloca, assim como alguns cânones, que o principal cuidado do sacerdote deve ser com espiritualidade de seu rebanho, pois “os sacerdotes são para vigiar”, sendo que para isso eles devem conhecer  “diligentemente o aspecto do rebanho, isto é do seu súdito, se tem em sua fronte o tau da paixão do senhor, recebido no batismo, ou então raspou e escreveu o sinal da besta”.
A luta da Igreja contra os maus hábitos dos religiosos tem neste discurso de Antônio um eco estrondoso, pois para o maior controle dos fiéis, estes religiosos deveriam, além de conhecê-los e policiar a vida deles,
ser um exemplo de fidelidade a Igreja e de testemunho de fé. Outro grande ponto para a demarcação do “sacerdote ideal” passa pela questão do matrimônio dos sacerdotes e da situação dos filhos dos religiosos. Esta preocupação está contida no seguinte trecho do sermão do 5º Domingo de Pentecostes:
A subsistência do sacerdote, com efeito, hoje é a mistura de
duas coisas, a palha do negócio terreno e o trigo da oferta
eclesiástica. Comem tal mistura os jumentinhos, isto é, os
filhos dos sacerdotes. Estes, com mulher e filhos, pretendem
libertar o povo de Deus do cativeiro do diabo; mas o senhor
irá ao seu encontro e o matará, se não se separarem da mulher
e dos filhos.13
Aqui, mais uma vez, encontramos um Frei Antônio preocupado em anunciar, isto é, propagar as idéias de Latrão, desta vez seguindo o decreto de número 14. Porém, neste cânone, abre-se uma exceção para os
religiosos em que o país de origem tenha como costume o casamento dos sacerdotes. Estes, contudo, devem manter-se fiéis a este matrimônio. Podemos observar então que, para o frade, a continência e a castidade, assim como para o Concílio, são pressupostos importantíssimos exigidos aos que assumem tarefas religiosas.
O cânone 31 de Lateranense IV, proíbe a nomeação dos descendentes dos religiosos para exercer cargos na Igreja nos mesmos templos seculares onde os pais estavam estabelecidos.
Antônio condena, também, aqueles religiosos que utilizam o dinheiro da Igreja para ajudar os parentes, ou pessoas poderosas em troca de benesses, ao afirmar que “em parte é sacrilégio dar a pertença dos pobres a
quem não é”, uma vez que, para Antônio, o dinheiro das igrejas, também tinha a função de ajudar os pobres.
Já no sermão do 14º domingo de Pentecostes, Antônio apresenta uma síntese da sua ideia de sacerdócio ao afirmar que:
O lugar do preceito do Senhor são os prelados, os clérigos e
os religiosos, nos quais deve haver lugar especial. Mas aí! Os
mesmos preceitos do Senhor foram consumidos pelo fogo
da luxúria e da avareza no seu lugar, nos clérigos e religiosos.
A caridade, a castidade, a humildade, e a pobreza, especiais
preceitos do senhor, foram destruídos nos clérigos e nos
religiosos, porque são invejosos, luxuriosos, soberbos e
avarentos.14


Concluímos que, para Frei Antônio de Pádua/Lisboa, os sacerdotes, de todas as escalas hierárquicas da Igreja, eram os culpados pela situação problemática vivida por tal instituição naquele momento. Visão que também pudemos observar na maioria dos cânones do IV Concílio de Latrão, que tem como um dos focos principais a preocupação pela correção destes religiosos.
Antônio, porém, tinha como finalidade a peleja contra a propagação das idéias heréticas, enquanto o Concílio em questão buscava, como principal escopo, a institucionalização da Igreja.
Acreditamos que a função de mestre de teologia que exerceu na sua Ordem dos Frades Menores o fez assumir a tarefa de reformar os maus hábitos que corrompiam o clero. Primeiro, por ser ele um homem que
circulou nos meios acadêmicos de seu tempo, as Universidades de Paris e Bolonha, entre outras, nos quais estavam em discussão estes problemas e segundo, por ele ter sido um pregador contra as heresias, ele acumulou a vivência dos problemas observados nos lugares onde foi pregar e onde a população era dominada pelas idéias heréticas.


Para Antônio, o combate destes maus hábitos exigia que os clérigos tivessem uma profunda formação intelectual, que serviria de guia principal em seu ministério. Além disso, estes homens deveriam comprometer-se com as coisas espirituais, sem se preocupar com dinheiro, posses e assuntos ligados ao poder temporal. Estes religiosos não poderiam ser casados ou ter filhos, pois só assim poderiam se dedicar exclusivamente ao sacerdócio e aos fiéis, não se preocupando com o futuro de sua família.
Antônio sinaliza ainda que este religioso deveria conhecer seu rebanho, sendo, para eles, um exemplo a ser seguido, pois dele dependia o entusiasmo que o povo teria em seguir Jesus Cristo. Se os membros do clero, assim agissem, a Igreja teria um corpo eclesial exemplar, que não temeria “diante do pecado, que exaspera o próprio Deus, e que estaria capacitado para não houvesse uma quebra perante a adversidade porque se
opõe, pela defesa da justiça aos que procedem como perversos e maus”.15
Antônio, como bom católico, não só seguiu as diretrizes da Igreja, como também procurou divulga-las, através de sua obra de pregador e professor, no seio da nascente Ordem Franciscana.

1 A presente comunicação foi parte integrante de nossa pesquisa que visava a elaboração de nossa monografia de final de curso orientada pela Profª Drª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e vinculada ao projeto Hagiografia e História, investigação coletiva desenvolvida junto ao Programa de Estudos Medievais – Pem.
2 FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitória: Editorial Eset, 1973.
3 MACEDO, Jorge Borges de. Os Sermões de Santo Antônio. Porto: Lello & Irmão, 1983.
4 Este autor é religioso da Ordem dos Frades Menores Conventuais e um dos responsáveis pela Revista Il Santo, especializada em história, arte e doutrina franciscana.
5 GAMBOSO, Virgílio. Vida de Santo Antônio. Aparecida: Santuário, 1994.
6 CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Lisboa: Casa da Moeda, 1968. V. 1.
7 Idem.
8 SILVEIRA, I. REIS, O. (Org.). São Francisco de Assis. Escritos e Biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do Primeiro século franciscano. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 152-153.
9 SILVEIRA, I. REIS, O. (Org), Op. Cit., p. 75.
10 MACEDO, Jorge Borges, Op. Cit., nota 1.
11 Sermão do 9º Domingo de Pentecostes.
12 Sermão do 12º Domingo de Pentecostes.
13 Sermão do 5º Domingo de Pentecostes.
14 Sermão do 14º Domingo de Pentecostes.
15 Sermão do 14º Domingo de Pentecostes.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O Discurso de Francisco de Assis: Paráfrase ou Polissemia

(Texto Publicado nos Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH)

Introdução

Esse texto tem como trilha principal a nossa pesquisa de doutorado que compara os Escritos de Francisco de Assis aos Sermões escritos por Antônio de Lisboa/Pádua, a fim de observar quais características principais, do itinerário proposto pelo fundador da Ordem dos Frades Menores, foram levadas em consideração na obra antoniana. Além disso, enveredaremos nesse trabalho a partir do caminho da Análise de Discurso, principalmente buscando os silêncios deixados pelo autor português em relação ao ideário do fundador. Com essa observação entenderemos, ou não, qual foi o papel do frade português na transformação/adaptação do grupo de frades aos interesses da Cúria Romana, para executar a missão de propagar a fé católica nos lugares ameaçados pelas heresias medievais.
Nossa fonte principal, nesse trabalho, são as Admoestações de São Francisco, texto esse que possui poucas análises monográficas específicas sobre ele. Quando trabalhamos com os escritos do fundador dos menores, temos que levar em conta que ele, na verdade, não os escreveu de próprio punho. Sempre contava com secretários e frades que escreviam e compilavam seus textos. Além disso, um fator importante é que textos como esse nos aproximam da figura de Francisco, pois deixam claro suas linhas principais de ação e seu ideário.
Trabalharemos essa fonte a partir dos conceitos teóricos e práticos da Análise de Discurso (AD), uma vez que segundo Eni Puccinelli Orlandi, ela tem seu ponto de apoio na reflexão que produz sobre o sujeito e o sentido, já que considera que, ao significar, o sujeito se significa. Além disso, o sentido do discurso não se encontra fixado na essência das palavras ele é determinado pela história. (ORLANDI, 1994: 54) Nesse sentido o que Frei Francisco dita em suas Admoestações não tem significado por si só. Depende dos acontecimentos que ladeiam a vida daqueles que se envolvem nesse discurso.
Ao trabalharmos com AD devemos entender que um de seus principais aspectos é sua noção de ideologia que ocorre a partir da consideração da linguagem. Nela compreende-se ideologia como “a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos”. (ORLANDI, 1999: 46) Essa ideia leva em conta que ao deparar-se com qualquer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar, isto é a buscar o sentido das palavras e das coisas. Portanto, não há interpretação sem ideologia. É ela a base para o sentido do que está exposto no discurso.
Sendo assim, sem a existência de uma ideologia, que desse sentido ao texto de Francisco, ele não teria uma relação necessária com o mundo. Fator essencial para o sentido do texto como falamos anteriormente.
Outro conceito importante é o de que esse discurso não é único em si mesmo. Ele vem de outros, não é inédito. Ao escrever seu texto o frade leva em consideração, conscientemente ou não, argumentações externas, tais como, as da Bíblia, dos Santos Padres, da liturgia da Igreja e dos grupos heterodoxos e outros que tenha tido contato.
Segundo Martín-Barbero:

(...) um discurso não é jamais uma mônada, mas o lugar de inscrição de uma prática cuja materialidade está sempre atravessada pela de outros discursos e outras práticas. Intertextualidade diz, nesse caso, não só das diferentes dimensões que num discurso fazem visível e analisável a presença e o trabalho de outros textos, [...] mas diz, também, da materialização no discurso de uma sociedade e de uma história. (MARTÍN-BARBERO, 1978: 137)

Essa “materialização no discurso de uma sociedade e de uma história” é análogo ao que em AD simboliza o interdiscurso: grupo de proposições constituídas ao longo dos tempos, adormecidas, mas vivas na “memória” social, que definem o que pensamos, dizemos e fazemos.
Sendo assim, Quando tratamos de memória na AD, falamos de interdiscurso, isto é, tudo já dito em outros lugares, independentemente, já esquecido, e que define o que dizemos. “Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso...”. (ORLANDI, 1999: 39)
No nosso caso então, será que tudo o que está no discurso de Francisco já foi dito? Nada é novidade? Obviamente que não. Na verdade durante a produção de um discurso ocorre uma tensão entre a repetição e a inovação. Isso é, entre a paráfrase e a polissemia. Os processos parafrásicos funcionam como uma memória institucionalizada, na verdade um arquivo, que proporciona a estabilização. Além disso, ela “é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo”. (ORLANDI, 1999: 38)
Já a polissemia proporciona a inovação, pois é baseada no que está esquecido, permitindo assim, a ruptura nos processos de significação. Ela está ligada a criatividade ao rompimento, surgimento do diferente, “pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer”. (ORLANDI, 1999: 38)
Diante do exposto acima, queremos nesse ensaio observar as inovações e as repetições no discurso exortativo de Francisco de Assis. Realizaremos essa tarefa nas cinco primeiras admoestações. Não existe um critério científico para tal corte a não ser a impossibilidade de tratar numa comunicação das 28 exortações. Por isso definimos de forma aleatória nossa análise.

Apresentação do Texto

As Admoestações são assim nomeadas, graças a serem denominadas como tal nos textos latinos e nas edições em línguas vernáculas. Essa palavra é expressa pelos verbos latinos moneo e admoneo, e pelo substantivo admonitio, que em linhas gerais são sinônimos de exortar/exortação e corrigir/correção. Esses termos que significam admoestar são usados nos escritos de Francisco como uma ação (moneo), ou o resultado dessa ação (admonitio).
Sendo assim, o Assisense encarava o termo admoestação como um forma de pregação pessoal, que tinha como objetivo a instrução, de conforto, e sustento. Essas admoestações são encontradas em mais de um texto franciscano como, por exemplo, na Regra Bulada e na Regra não bulada. Elas tem o significado “pedagógico-salvífico” e quem a pronuncia é o responsável pela animação da fé e da vida dos frades da comunidade franciscana. Esses textos são um modo de educar, servem de recurso pastoral de controle, uma pregação qualificada como uma exortação pastoral, orientação àqueles que andavam segundo a carne, além de incitar aos frades a seguirem firmes na fé , na vocação e retamente o Evangelho.
Porém, como já exposto acima, existe entre os escritos de Francisco um texto com o título específico de Admoestações. Esse escrito, composto por vinte e oito textos exortativos, traz em seu bojo a dimensão total do projeto educacional que Francisco queria implementar para salvar a sua alma. Eles foram proferidos pelo Poverello, para instruir aos irmãos, sem data e em circunstância exata. (MOTA, 1998: 99) Consensualmente os teóricos aceitam a ideia de que foram reunidos pela primeira geração franciscana, quando Francisco ainda era vivo, porém sem data nem local definido.
Quanto a sua autenticidade não se costuma discutir, pois são textos que estão presentes tanto nas obras de Tomás de Celano, quanto nas de Boaventura e atestadas por manuscritos em abundância. Além disso, os códices que o transmitiram o fizeram antes ou ao mesmo tempo em que os outros textos mais confiáveis, tendo o estilo, modo associativo de pensar e falar caros e familiares a Francisco. (MOTA, 1998: 99)
Para Paul Sabatier podem ter sido fragmentos da Regra de 1221 postos de lado, para não alongar mais o texto. (MOTA, 1998: 99) Outros estudiosos, também o enquadram na categoria de textos legislativos, apontando-os como acréscimo ou explicação adicional a essa Regra. (SILVEIRA-REIS, 1996: 59)
Caetano Esser afirma que o texto apresenta reflexões teológicas que se voltam para a vida concreta da Ordem dos Frades Menores, onde se revela o mistério da pobreza na qual se imitava humanamente a renúncia de Cristo. (ESSER, 1976: 10)
Martino Conti afirma que:

As admoestações de São Francisco pertencem ao gênero literário sapiencial-exortativo com finalidade pedagógico-salvífico. Ao lançar mão deste gênero literário, comum à literatura sapiencial do Antigo Testamento, às Palavras do Senhor e aos Ditos dos Padres do Deserto, São Francisco tem consciência de ser mestre de vida espiritual, isto é educador da fraternidade franciscana e, como tal, age com toda simplicidade. (CAROLI, 1999:23)

Segundo esse autor Francisco era um educador da Cristandade que usa a forma discursiva tradicional, juntamente com um conteúdo preso às particularidades Medievais.
Sendo Assim, vamos mergulhar no texto para ver que lições são essas e o que trazem de novidade para os frades e todos aqueles que as ouviram sendo proferidas por Francisco.

Análise do Texto

Na primeira Admoestação (Adm 1), a mais longa de todas, Francisco iniciou sua argumentação tomando como base o capítulo quatorze, versículos do seis ao nove do Evangelho de João, evangelista predominante nessa admoestação. Esse texto bíblico é o que lhe confere autoridade para suas argumentações, ressaltando que a Adm 1 é a que tem maior quantidade de referências bíblicas. Vemos aqui uma característica na obra de Francisco, a relação sincrônica do seu discurso com os textos bíblicos que utilizou.
Nessa admoestação fica definido que, para o fundador, cristão era o crente subordinado a Deus, subordinação esta simbolizada pelo Eucaristia.
A questão principal, aqui, era a dupla natureza de Cristo expressa no dogma da transubstanciação, ocorrido no rito eucarístico. Quem comungava aceitava a Cristo, ao mesmo tempo humano e divino. Isso o fazia entrar no grupo de pessoas que são subordinadas a Deus. Notamos então, que nesse texto o batismo, considerado pela Igreja o sacramento de inscrição na comunidade de fiéis, ficava em segundo plano.
Para Francisco a participação na mesa da eucaristia conferia ao fiel a salvação da alma. Pois, esse ritual, manifestava o sagrado através do pão e do vinho, sendo que isso só o era possível por intermédio do sacerdote. Essa ideia é uma novidade. Pois, apesar do batismo ser um sacramento fundamental, não era, obrigatoriamente, ministrado por um sacerdote.
Para Conti, esta seria uma instrução reorientando aqueles que andavam segundo a carne, a fim de que caminhassem segundo o espírito. Pois, só conseguiriam entender essa manifestação se passassem a observar o mundo com os olhos do espírito.(CONTI, 2004:35)
O Poverello orientou aos que não criam no rito eucarístico, particularmente na transubstanciação, a aceitarem a eucaristia naquilo que ela simbolizava aos olhos de Francisco: a repetição de um ato de humilhação de Jesus, que nasceu homem e proporcionou a salvação do homem se este reconhecesse o amor de Cristo por meio de um rito que simbolizava a descida do divino na carne, isto é, repetição simbólica do significado do nascimento de Cristo.
Martino Conti (CONTI, 2004:29) destaca que estava ocorrendo uma “Cruzada Eucarística” cujos debates entre eclesiásticos eram intensos e fervorosos. Seu texto relaciona-se com outros da época. Este cenário de ampla discussão diz respeito aos grupos religiosos laicos que contestavam os comportamentos de parte do clero, acusado de não ser digno do cargo que ocupavam. O que realmente tem fundamento se observarmos que o batismo não é tão combatido quanto à eucaristia.
Muitos estudiosos apontam os cátaros como o enunciatário principal, pois negavam a transubstanciação, para eles o tal sacramento não existia. Em Assis existiram grupos de cátaros que certamente interagiram com Francisco e seu grupo. Contudo a questão eucarística encobre uma discussão mais profunda e enraizada na sociedade ocidental: o conceito de dualidade. Os cátaros, segundo fontes ligadas a Igreja, eram maniqueístas, pois acreditavam existir dois princípios iguais e opostos o Bem o Mal. O material, inclusive o corpo humano é criação do Mal e deve ser combatido pelo Bem.
Hoje, porém, já podemos observar, a partir de estudos mais recentes, que há uma diferença entre os cátaros e os maniqueístas, pois entre os primeiros havia uma hierarquia dos princípios do Bem e do Mal. Eles não tinham a mesma força e o Bem estava acima do Mal.
Na segunda admoestação (Adm.2) Francisco identificou o livre-arbítrio e a soberba com os bens que o homem usufrui, mas que são de propriedade de Deus, como qualidades negativas, mas inerentes a Adão. Isto é faziam parte do corpo, da matéria.
Francisco de Assis possuia uma lógica ligada a dualidade: o corpo tende a vícios e erros, mas a alma podia controlá-lo, combater seus vícios e educá-lo. A grande diferença entre ele e os cátaros não era essa questão, mas a participação no rito da eucaristia. Porém, Francisco os instruiu sobre isso, afirmando que a transubstanciação está condicionada a função sacerdotal. Para ele a aceitação do rito e sua compreensão são o significado do aceitar ser cristão, principalmente para seus irmãos. Por isso é importante para ele as afirmações anteriores sobre a eucaristia. Elas marcam a diferença entre o seu grupo e o heterodoxo.
A aliança entre Deus e os homens implica na obediência à Deus. O direito a salvação perpassa pela obediência ao Senhor de tudo e de todos, subordinando-lhe o livre-arbítrio e o mérito das coisas que fazemos. Nas admoestações 2, 3 e 4 o fundador esclarece o que para ele é obediência e o que significa ser obediente na prática diária. Essa visão não é uma novidade ela já está dentro do que poderíamos chamar de paráfrase.
Então porque o homem devia obediência a Deus? A Adm 2 trata disso. Cada homem deveria se redimir da herança deixada por Adão em seus atos de soberba e desobediência. Para isso deveria abandonar sua vontade própria e o orgulho de si. Teria que se despojar de todo o interior abandonando os méritos do bem que se fazia. O ser obediente era o mesmo que ser pobre, comportando-se humildemente. A obediência levava a renúncia do eu e a transformação do homem em instrumento de Deus, como meio de alcançar a salvação e ficar livre da angústia.
Nesse momento, o Poverello não tinha como alvo a estrutura eclesiástica. Não tratava-se de uma crítica a Igreja Romana. O que queria afirmar era que a obediência era a expressão da pobreza interior. Pois, segundo ele, a obediência a Cristo conduzia a obediência à Igreja como representante de Deus. Apesar de a obediência ser uma prática comum, a novidade estava na forma como se deveria alcançar essa obediência. A pobreza interior apesar de estar incutida no discurso cristão era uma prática que não era valorizada pela Igreja até o século XIII.
Para o frade o pecado da desobediência nascia em cada homem, ideia que condiz com a concepção dual do corpo e alma que ele apresentava, pois o pecado está no corpo, cabendo à alma combater o corpo, combater os vícios através da prática das virtudes. Quem obedecia a Cristo obedecia a Deus, subordinava-se a ele, deveria seguir um comportamento que viabilizasse o controle da vontade própria.
Na Adm 3 o autor afirma que o religioso deveria ser obediente ao seu superior. Deveria negar o seu eu, vendo no outro a imagem de Deus. Já na Adm 4 ele inverteu a orientação e orientou ao superior no que tange ao exercício do poder e da autoridade.
Segundo Caetano Esser:
Ao principio bastava a sua presença. Ele era sim, mais o pai e o mestre, o orientador e o superior, mas quando a multidão dos frades cresceu, tornaram-se necessários para os vários grupos, superiores que fossem responsáveis de tudo. Vemos como Francisco não ignorou esta necessidade da vida humana. A sua grande preocupação, porém, é que este ofício fique ordenado ao espírito da comunidade”. (ESSER, 1976: 81)

Fica claro, então, que essa admoestação foi feita quando Francisco já não podia acompanhar tão de perto seus irmãos, devido o crescimento do grupo. Essa situação trouxe certa confusão, pois sua ausência acabava sendo preenchida pelo que se ouvia dizer ou se lembrava de sua fala. Isso, também, facilitou a influência das ideias de muitos religiosos que possuíam outros costumes e hábitos, distorcendo os princípios praticados e exortados por ele.
Os superiores franciscanos deveriam ser humildes no tratamento do outro. Pois, para ele só existem superiores devido a uma necessidade funcional. Tanto que a ideia de minoridade surge como contrariedade a hierarquização da sociedade e da Igreja, apresentando uma aspiração igualitária nivelada por baixo. Outra novidade, ou seja, mais uma polissemia do discurso franciscano. Sabemos que esquecido no interior do discurso cristão estava a ideia de fraternidade universal. Porém, como dito acima, no século XIII, isso era uma utopia, tanto na Igreja como na sociedade.
Na Adm 5 Francisco afirmava que a pobreza exterior poderia conduzir a um orgulho de si, isso poderia levar o corpo ao vício de se ser pobre só materialmente. Além disso, ele condenava aos homens de saber, por acreditarem serem superiores aos outros. Para ele o conhecimento não atribuía nenhum valor ao homem, isto é, não é algo que valorizava o homem diante de Deus, pois tudo era propriedade dele. O saber era algo que Deus proporcionava para que o homem agisse como instrumento de sua graça.
Seu raciocínio levava em conta que a beleza, a riqueza e o conhecimento eram dons de Deus, e não deveriam ser utilizados como critérios para julgar e apreciar os homens, mas sim como algo usado pelos homens para a glória de Deus.
Para o fundador a raiz do orgulho é o egoísmo. Pois o comportamento ideal é a pobreza e a humildade para com o pecador, ou seja, comportar-se como um pobre de espírito.

Conclusão

Através dos trabalhos de diversos estudiosos, muitos deles reconhecidos mundialmente, como Jacques Le Goff, sabemos que Francisco de Assis inaugurou, dentro da sociedade Ocidental Medieval, uma forma de viver a fé Cristã que foi avassaladora. Milhares de pessoas, rapidamente, passaram a comungar de suas ideias e aderiram ao seu ideário de vida, quer entre os Frades Menores, quer entre as Damianitas ou, ainda, entre os irmãos a Ordem Terceira da Penitência.
Porém, através de estudos realizados dentro do âmbito da Análise de Discurso, entendemos que os discursos não são inéditos, sempre partem de outros. O que não quer dizer que esses não apresentem novidades, ou como chamamos inovações. O que não foi diferente no caso do Poverello de Assis.
Apesar de no século XIII, ser considerado uma grande novidade, sabemos que o discurso franciscano é um continuum do discurso evangélico, mas que vai dar uma nova roupagem ao discurso institucional eclesiástico da Igreja Romana.
Para demonstrar o que afirmamos agora, redigimos um trabalho que procurou, a partir de cinco exortações da obra Admoestações de Francisco, mostrar se houveram inovações trazidas por seu discurso.
Constatamos, então, que o fundador dos Menores, inovou ao tratar a eucaristia como o sacramento que realmente inscrevia o crente no grupo de cristãos, deixando de lado o batismo. Além disso, trouxe à tona a ideia de que a pobreza interior era fundamental para que a obediência à Deus e consequentemente a Igreja pudessem acontecer plenamente. E por último transmitiu o valor da fraternidade universal, rompendo com a estrutura social do Medievo e revalorizando tal princípio cristão.
Apesar de alguns estudiosos acharem que ele queria travar uma discussão tanto com os cátaros como com a Igreja, chegamos a conclusão que não. Francisco primeiro tentou através de seu discurso, deixar claro suas propostas, a fim evitar que os Pobres de Assis, fossem confundidos com os grupos heterodoxos. Assim como tenta retirar ou evitar que adentrem ao interior de suas fileiras adeptos do catarismo. Isso fica claro ao conduzir sua discussão sobre a eucaristia, pois apesar de aceitar a ideia dualista de que o corpo é o canal do pecado, ele deixa clara a importância da Igreja como canal das graças de Deus.
Tratando da questão da pobreza interior, a ligação que faz dela o caminho para a obediência a Deus e a Igreja, é uma saída para o lugar comum dos grupos heréticos. Apesar de seu modo de vida ser uma crítica à instituição, Francisco não quer instrumentalizá-la para isso. Ele a transforma em uma maneira de ser fiel a ela. Pois, quem é pobre interiormente se entrega nas mãos de Deus e por isso, não debate sobre a situação da Igreja. Na verdade vê nela a presença de Deus.
Quanto a instituição de uma fraternidade universal, essa é realmente uma grande novidade. Podemos notar que nas ordens religiosas existentes até o XIII, a hierarquia é uma forma de viver o projeto de Cristo. Para Francisco não. A hierarquização gera injustiça. Não deixa o Amor fluir. Nesse ponto ele não se preocupa com o enfrentamento com a Igreja e nem com a sociedade. O Amor é fundamental em seu projeto e ponto final. Não merece maquiagens e nem pode ter medo de nada.

Bibliografia

ADMOESTAÇÃO. In: Dicionário Franciscano. Petrópolis : Vozes, 1999.
CONTI, Martino Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis : Vozes, 2004.
Escritos de São Francisco. Editorial Franciscana. http://www.editorialfranciscana.org/files/_Escritos_4aef8457d0054.pdf. Acesso em 14/10/2012.
ESSER, Caetano. As Exortações de Francisco de Assis. Braga : Editorial Franciscana, 1976.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicación masiva: discurso y poder. Quito: Editora Época, 1978.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
________. Discurso, Imaginário Social e Conhecimento. No site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, endereço http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/911/817. Acesso em 14/10/2012.
SILVEIRA, I. Frei; REIS, O. dos. (Org.). São Francisco de Assis: escritos e biografias de São Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 7. ed. Petrópolis : Vozes, 1996.






















ANEXO


ADMOESTAÇÔES


Adm 1 - O CORPO DO SENHOR

1 Diz o Senhor Jesus a seus discípulos: Eu sou caminho, verdade e vida; nin guém vai ao Pai se não por mim.
2 Se conhecesses a mim, também conheceríeis certa mente meu Pai; e desde agora o conheceis e o vistes.
3 Diz-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e basta para nós.
4 Diz-lhe Jesus: Tanto tempo estou con vosco e não me conhecestes? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai (cf. Jo 14,6-9).
5 O Pai habita a luz inacessível (cf. 1Tm 6,16), e Deus é espírito (Jo 4,24), e a Deus nunca ninguém viu (Jo 1,18).
6 Por isso não pode ser visto senão em espírito, porque é o espírito que vivifica; a carne não adianta nada (Jo 6,64).
7 Mas nem o Filho, no que é igual ao Pai, é visto por al guém diferentemente do Pai, diferen temente do Espírito Santo.
8 Por isso todos os que viram o Senhor Je sus segundo a humanidade e não viram e creram segundo o espírito e a di vindade que ele era o verdadeiro Filho de Deus, foram condenados;
9 assim também agora todos os que vêm o sacramento que se consagra pelas palavras do Senhor sobre o altar por mão do sacerdote na forma de pão e vinho, e não vêem e crêem segundo o espírito e a di vindade, que é verdadeira mente o santíssimo corpo e sangue de nos so Senhor Jesus Cristo, foram condenados,
10 pelo testemunho do próprio Altíssimo, que diz: Este é meu corpo e meu sangue do Novo Testamento [que será derramado por muitos] (Mc 14,22,24) e:
11 Quem co me a minha carne e bebe o meu san gue, tem a vida eterna (cf. Jo 6,55).
12 Por isso o espírito do Senhor, que mora em seus fiéis, é quem recebe o san tíssimo corpo e sangue do Senhor.
13 Todos os outros, que não têm o mesmo espírito e presumem recebê-lo, comem e bebem a própria conde nação (cfr. 1Cor 11,29).
14 Por isso: Filhos dos homens, até quando tereis um coração pe sado? (Sl 4,3).
15 Por que não conheceis a ver dade e credes no Filho de Deus? (cfr. Jo 9,35).
16 Eis que se humilha diariamente, como quando veio do trono real (Sb 18, 15) ao útero da Virgem;
17 vem diariamente a nós ele mesmo aparecendo humilde;
18 des ce todos os dias do seio do Pai (cfr. Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote.
19 E como se mostrou aos santos após tolos em carne verdadeira, assim também a nós agora no pão sagrado.
20 E como eles com a visão de sua carne só viam a carne dele, mas criam que era Deus contemplan do com olhos espirituais;
21 assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corpo rais, vejamos e creiamos firmemente que é seu santíssimo corpo e sangue vivo e verda deiro.
22 E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século  (cf. Mt 28,20).

Adm 2 - O MAL DA VONTADE PRÓPRIA

1 Disse o Senhor a Adão: Come de toda árvore, mas da árvore do bem e do mal não comas (cf. Gn 2,16-17).
2 Podia comer de toda árvore do pa raíso porque, enquanto não foi contra a obediência, não pecou.
3 Pois come da ár vore da ciência do bem aquele que se apro pria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor diz e opera nele;
4 e assim, por sugestão do diabo e por trans gressão do mandamento, tornou-se pomo da ciên cia do mal.
5 Por isso precisa sofrer a pena.

Adm 3 - A OBEDIÊNCIA PERFEITA

1 Diz o Senhor no Evangelho: Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33); e:
2 Quem quiser salvar sua alma, vai perdê-la (Lc 9,24).
3 Deixa tudo que possui e perde seu corpo o homem que se entrega inteiro à obediência, nas mãos de seu prelado.
4 E tudo que faz e diz, que saiba que não é contra sua vontade, se é bom o que faz, é verdadeira obediência.
5 E se alguma vez o súdito vê coisas melhores e mais úteis para sua alma que as que lhe ordena o pre lado, sacrifique as suas volunta riamente a Deus, e trate de cumprir com o bras as coi sas que são do prelado.
6 Pois essa é a obediência caritativa (cf. 1Pd 1,22), que sa tisfaz a Deus e ao próximo.
7 Mas se o prelado ordenar alguma coisa contra a sua alma, ainda que não lhe obedeça, todavia não se separe dele.
8 E se por isso sofrer perseguição de al guns, ame-os mais por Deus.
9 Pois o que prefere so frer perseguição a separar-se de seus irmãos, permanece de verdade na obe diência perfeita, porque dá sua vida (cf. Jo 15, 13) por seus irmãos.
10 Pois há muitos religio sos que, com a desculpa de que vêem coi sas melhores do que as mandadas por seus pre lados, olham para trás (cf. Lc 9,62) e voltam ao vômito (cf. Pr 26,11; 2Pd 2,22) da própria vontade;
11 estes são homicidas e, por seus maus exemplos, põem a perder muitas al mas.


Adm 4 - QUE NINGUÉM SE APROPRIE DA PRELATURA

1 Não vim para ser servido mas para ser vir (cf. Mt 20,28), diz o Senhor.
2 Os que estão constituídos sobre os ou tros, gloriem-se dessa prelatura como se ti vessem sido encarregados do ofício de lavar os pés dos irmãos.
3 E quanto mais se pertur bam por lhes tirarem a prelatura do que por lhes tirarem o ofício de lavar pés, tanto mais acumulam bolsas para o perigo da alma.

Adm 5 - QUE NINGUÉM SE ENSOBERBEÇA MAS SE GLORIE NA CRUZ DO SENHOR

1 Considera, ó homem, em que grande excelência te pôs o Senhor Deus, porque te criou e formou à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo e à sua semelhança segundo o espírito (cf. Gn 1,26).
2 E todas as criaturas que há sob o céu, a seu modo servem, conhe cem e obe decem seu Criador melhor do que tu.
3 E mesmo os demônios não o crucifi caram mas tu com eles o crucificaste e ainda crucificas, deleitando-te em vícios e pecados.
4 De quê, então, podes gloriar-te?
5 Pois se fosses tão sutil e sábio que ti vesses toda a ciência (cf. 1Cor 13,2) e soubesses interpretar toda espécie de lín guas (cf. 1Cor 12,28) e investigar subtilmente sobre as coi sas celestes, não podes glo riar-te em todas essas coisas;
6 porque um só demônio sabia as coi sas do céu e ainda sabe as da terra mais que to dos os homens, ainda que hou vesse algum que tivesse recebido do Senhor um conheci mento especial de suma sabe doria.
7 Do mesmo jeito, se fosses mais bonito e mais rico do que todos e mesmo que fizesses maravilhas, espantando demônios, tudo isso te é contrá rio, e nada te pertence e de nada podes gloriar-te;
8 mas disto podemos gloriar-nos: de nossas fra quezas (cf. 2Cor 12,5) e de carregar todos os dias a santa cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Lc 14,27).

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Programação do Programa de Estudos Medievais - UFRJ


Exibição de filme, seguido de debate: Conhecendo os problemas da saúde através dos filmes
Filme: Morte Negra (Black Death, Christopher Smith, 2010)
Debatedor: Prof. mestrando Victor Camacho (PPGHC-UFRJ)
Dia: 15 de abril de 2014
Horário: 14h
Local: IMAS Juliano Moreira - Estrada Rodrigues Caldas, 3400
Atividade realizada em conjunto com o IMAS Juliano Moreira.
Confira aqui mais detalhes sobre a atividade.


Curso: Leitura e crítica aos textos medievais
Professores: 
Andréa Torres (mestranda PPGHC - UFRJ)
Jefferson Machado (doutorando PPGHC - UFRJ)
Marta Silveira (UNESA)
Valdiza Rogério da Silva (doutoranda PPGHC - UFRJ)
Dias: 07; 14; 16 e 30 de Maio de 2014
Horário: 14h
Local: SISEJUFE - Av. Presidente Vargas 509, 11º andar – Centro - RJ
Atividade realizada em conjunto com o SISEJUFE 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

OS BESTIÁRIOS MEDIEVAIS: SUA HISTÓRIA E SUA INFLUÊNCIA SOBRE A INTELECTUALIDADE MEDIEVAL

 

O frade franciscano português Antônio de Lisboa/Pádua, um dos santos católicos de maior veneração no mundo, nasceu entre os anos de 1190 e 1195 em Lisboa, onde iniciou seus estudos na escola episcopal da Sé de Lisboa e continuou sua formação intelectual no Mosteiro de São Vicente de Fora. Esta instituição religiosa foi fundada pelos religiosos do mosteiro mais influente de Portugal, o de Santa Cruz de Coimbra, que pertencia a ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho, e onde Fernando Martins, o nome de batismo de Antônio, concluiu sua fase de estudos em solos portugueses.
Vale citar que estes mosteiros contavam com mestres que estudaram em Paris e possuíam bibliotecas que tinham em seu acervo obras que possibilitavam uma formação intelectual que não ficava tão distante das que eram oferecidas pelas primeiras instituições universitárias da Europa (CAEIRO, 1968, p.58).
Após desilusões no âmbito doutrinal e pastoral com os regrantes, o cônego Fernando tentou encontrar um novo rumo para a sua vida religiosa ao entrar para a nova, porém já reconhecida, Ordem dos Frades Menores, fundada por Francisco de Assis. Este religioso italiano foi uma das figuras fundamentais na virada que a Igreja tentava dar como resposta aos constantes ataques, oriundos de vários grupos contestadores, as chamadas heresias, que cresciam rapidamente por toda a cristandade e que traziam a tona todas as mazelas e falhas que eram praticadas pelos membros da Instituição romana.
Desta forma, Antônio entrou em um movimento que se encontrava na vanguarda da busca de uma Igreja Romana reformada a partir da própria instituição. Assim, quando já entre os frades o português se destacou por sua pregação, logo foi incluído entre aqueles que implementaram o trabalho de convencimento da população em geral a favor da causa da Sé Romana contra os Cátaros, heresia medieval que atuava no norte e sul das atuais Itália e França respectivamente. Ao se destacar nesta função, foi convidado a ser o primeiro mestre de Teologia dos Menores. Diante desta incumbência, fundou algumas casas de estudo e começou, a partir do pedido de seus alunos, a escrever uma obra intitulada Sermões que foi estruturada como um manual para que os pregadores pudessem basear-se para fundamentar suas pregações (PELLEGRINI, 1999, p.201).
Em sua obra, o lisboense utiliza, constantemente, o exemplo dos animais e suas características para demonstrar com deveria ser o comportamento dos cristãos em geral. Esta prática muito comum entre os escritores medievais tinha como base as obras que foram chamadas de Bestiários.



Os Bestiários eram muito comuns na Idade Média e faziam a associação de animais, como metáforas e símbolos, aos princípios dogmáticos e morais cristãos. Segundo Nilda Guglielmi, é “una obra pseudocientífica moralizante sobre animales existentes y fantasiosos" (AYERRA & GUGLIELMI, 1971, p.7). Um dos mais antigos bestiários é o Fisiólogo, compilação de “pseudociência”, no qual são encontradas descrições de animais, aves e até pedras, reais e imaginários, para ilustrar aspectos do dogma e da moral cristãs (por exemplo, o peixe e o cordeiro como símbolos de Cristo).
Sabemos que Antônio combateu firmemente as práticas contrárias ao que a Igreja Romana esperava dos religiosos medievais. Assim, o seu maior alvo eram os componentes do clero secular e das antigas ordens, que incitavam a população, propagando a desconfiança e até mesmo insultando os muitos Menores e Pregadores que, com suas pregações incisivas e com seu modo de vida afrontavam e criavam, involuntariamente, comparações que eram desvantajosas para aqueles que há muito encontravam-se estabelecidos nas paróquias e localidades onde ocorriam os trabalhos missionários implementados pela Igreja no século XIII (RIGON, 1999, p.295).
Neste trabalho procuraremos entender, através das características imputadas ao animal imaginário basilisco no Sermão do Sexto Domingo Depois da Festa de Pentecostes, tendo como parâmetro de análise a comparação com o que nos informam os Bestiários Medievais, quais eram os problemas enfrentados pelos religiosos que haviam sido colocados em missão pelo papado, através das exempla citadas por frei Antônio.
Esta comunicação faz parte de uma pesquisa maior vinculada ao Projeto Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvida junto ao Programa de Estudos Medievais (PEM), que tem como meta nos auxiliar nas pesquisas de elaboração de nossa Dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada(PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em nossa análise utilizamos a versão bilingüe latim/português dos Sermões traduzida e organizada por Henrique Pinto Rema, e utilizaremos, a fim de podermos observar a visão medieval sobre o basilisco como símbolo, a obra Bestiário Medieval, uma coletânea de trechos de bestiários medievais, que foi compilada e traduzido para o espanhol por Ignacio Malaxecheverria.
O sermão objeto de nossas reflexões cita o basilisco para ensinar princípios cristãos. O frade divide o texto em quatro partes principais. Na primeira, que chama de Exórdio, procura orientar aos prelados e pregadores da Igreja Romana quanto à importância da prática da justiça, tendo como base os ensinamentos bíblicos, principalmente para que a pregação sobre a salvação das almas seja feita de forma coerente.


Na segunda parte ele continua sua admoestação aos religiosos, chamando-os a serem verdadeiros penitentes, afastando-se da soberba e fazendo valer o significado do batismo, principalmente como um processo de purificação espiritual. Neste trecho prega ainda sobre a maior importância que deve ser dada aos bens espirituais para que se alcançasse verdadeiramente o Reino de Deus.
A terceira parte do sermão, denominada Sermão contra os iracundos, trata da besta a qual vamos nos ater na comunicação.
E na quarta parte, o frade deteve-se na necessidade do cristão penitenciar-se e buscar a devoção a fim de que não se torne um pecador. Transformando este trecho em uma espécie de manual para a purificação do homem que quer buscar a Deus.
Em nossa pesquisa constatamos, por muitas vezes, que quando em sua obra os religiosos são admoestados, normalmente, o frade lança mão de palavras muito duras. Neste sermão não é diferente e logo em seu inicio Antônio afirma que,

Ai, quantos religiosos há hoje que clamam ainda no deserto, na Religião ou no claustro (...). Desde amanhã até o meio-dia, clamam, dizendo: Baal,[1] ouve-nos. Que é clamar a Baal senão desejar ser superior? Mas não há voz que responda à sua vontade. De novo clamam mais forte. Clamar é desejar. (...) No tempo de Elias, os profetas de Baal clamavam e não eram ouvidos. Nos nossos tempos, porém, clamam e são ouvidos. São postos em grau superior, para que a queda seja mais grave. Antes era a voz humilde, o hábito grosseiro, o ventre encolhido, a face pálida, a oração em público assídua. Agora, porém, falam alto com ameaças; caminham de capa e de fíbula; andam de barriga proeminente, de face rubicunda; bem dormidos sem qualquer oração.

Aqui fica clara a crítica às ordens mais antigas, inclusive a dos cônegos regrantes, da qual o pregador se desligou para ser um frade Menor. Esta clareza vem do fato de que estes, assim como os Regrantes e as Ordens mais antigas, acabavam abandonando o projeto inicial e não conservam os ares primaveris de suas fundações. Uma vez que, quando criadas, representavam o ideal de pobreza e humildade praticadas para se buscar a vivência radical do Evangelho. Porém, o que se vê no Século XIII são instituições que buscavam evangelizar mais pela força do que pelo exemplo e vivência da mensagem cristã.
Para explicar o porque da diferença entre os profetas de baal e os religiosos de seu tempo, quanto ao atendimento de seus clamores, Antônio afirma que os antigos profetas não eram atendidos, porém o clero medieval era atendido pois, ao clamar, não chamavam a Baal, mas sim a Deus, que é o mesmo Javé de Elias, que os escutava, mas no intuito de dar-lhes uma lição. Desta forma, o frade afirmava que ao chegar ao topo a queda destes religiosos iria ser muito mais desastrosa e também pedagógica, uma vez que serviria de exemplo aos outros cristãos.
Para nós, apesar de Antônio não utilizar, de forma explicita, o termo religioso em seu sermão, ao mencionar, de forma metafórica, a besta conhecida como basilisco, o frade queria atacar membros do alto clero.


A besta citada por frei Antônio poderia ser qualquer poderoso da época, leigo ou clérigo, porém defendemos que ele se refere a um bispo, já que os poderes descritos pelo frade só  poderiam ser exercidos por um líder religioso poderoso, que tirava proveito de sua condição para usurpar toda a população a qual deveria pastorear. Chegamos a essa conclusão, principalmente diante desta afirmativa feita pelo frade: “corrompe até a própria atmosfera, ou seja, a vida dos religiosos; põe no céu da boca, e a língua passa-a para a terra. Também as serpentes, isto é, os amigos e companheiros, conhecedores de sua malícia, têm horror do seu sibilo”.
No trecho acima, quando o frei afirma que este poderoso “corrompe até a própria atmosfera”, esclarece que com suas atitudes o religioso prejudicava a própria instituição. E que mesmo aqueles religiosos, que eram seus parceiros de irregularidades e que se aproveitam de tal poder, tinham medo dele.
Para os bestiários, este animal é uma criatura estranha que “nace del huevo de un gallo, como afirma o bestiário de Pierre de Beauvais editado por P. Cahier.[2] Este ovo era colocado quando esta ave completava sete anos e já não conseguia cruzar com as galinhas.
Para a postura deste ovo, que não tinha casca, mas contava simplesmente com a proteção de uma película, o galo fazia um buraco que seria seu ninho e ficava vários dias indo e voltando do local onde o depositara. O sapo ficava atento a estes movimentos e logo depois do ovo ser colocado ia correndo para chocá-lo.
Quando já havia sido chocado por tempo suficiente, o filhote de basilisco rompia a película protetora e mostrava toda a sua estranha aparência. Assim como muitas outras bestas medievais, este era uma mescla de criaturas diferentes. Tal animal tinha a crista, os olhos, as patas e o peito de galo e o restante do corpo semelhante ao das serpentes.
Após o nascimento, como ainda era filhote, o basilisco escondia-se em uma gruta ou cisterna, pois se fosse visto pelos homens, estes dariam cabo do monstro, porém se a besta avistasse primeiro o ser humano, esta se transformaria em seu algoz.
Segundo o bestiiis et allis rebus, este ser imaginário “es el rey de las serpientes”. Isto quer dizer que ele era o maior entre os demônios, uma vez que as serpentes simbolizavam o diabo. Até estas tinham medo do poder deste animal, pois qualquer ser que fosse mordido ou tocado pela criatura, morria.[3]
Quanto ao ser humano este só podia ser morto pelo monstro através de seu veneno. Para o bestiário PB, tal substância era ejaculada a partir de seus olhos, de tal forma que era arremessada como labaredas de um lança chamas, fazendo com que tudo o que fosse atingido por este jato acabasse queimado.
Segundo os Bestiários, o basilisco possuía uma linda cor e era manchado de branco, uma vez que Deus havia de fazer alguma coisa para remediar tamanho perigo que vinha da fera.
Além do homem, o único animal que poderia dar fim ao monstro era a doninha, que os homens colocavam nas tocas onde moravam as bestas que quando voltavam eram atacadas e morriam.
Frei Antônio, no Sermão do Sexto Domingo Depois de Pentecostes, cita algumas características do basilisco:

Nota que o basilísco é um réptil do comprimento de meio pé, e representa perigo singular sobre a terra. Com seu sopro extingue ervas, dá cabo das árvores, mata e incendeia os animais, etc. Corrompe até a própria a atmosfera, de modo que nem mesmo no ar ave alguma voa impune, infectado como está com o seu sopro pestilencial. As serpentes têm horror do seu sibilo, e ao fugirem cada qual corre por onde quer que pode. A fera não come nada do que seja morto pela sua mordedura. A ave não lhe toca. É vencido, todavia, pelas doninhas, que os homens metem nos buracos, onde ele se oculta.



Ao mostrar as características de uma pessoa poderosa a qual ele não informa nem o nome, nem a região que vive e nem qual seria sua função social, o frade lança mão do exemplo do “rei das serpentes” e diz que:

(...) pelo veneno da iracûndia, extingue com o sopro da sua malícia as ervas, isto é, os pobres; dá cabo das árvores, ou seja, dos ricos, mercadores e usurários deste século; mata e incendeia os animais, que são os seus domésticos; corrompe até a própria atmosfera, ou seja, a vida dos religiosos; põe no céu da boca, e a língua passa-a para a terra. Também as serpentes, isto é, os amigos e companheiros, conhecedores de sua malícia, têm horror do seu sibilo. Quando se lhe inflama a ira, cada um precipita-se em fuga, correndo a esconder-se em qualquer lugar, mesmo que seja um curral de porcos. Este senhor tão fero, tão ignorante de si mesmo e inflamado pelo espírito diabólico, é vencido pelas doninhas, que são os pobrezinhos de espírito. Não o temem, porque nada têm a perder. Os homens onerados pela terra da pecúnia, não ousando aproximar-se dali, metem-nos nos buracos onde este fero se esconde. Falai-lhe, vós, dizem, porque nós não temos coragem.

Podemos observar, a partir desta narração, que um homem letrado como o menorita lisboense, fez uma transposição direta e sem nenhuma filtragem dos Bestiários para os seus Sermones. Vemos, também, que ele não se preocupou em nenhum momento em tratar o animal como uma espécie imaginária. Esta característica da opera antoniana nos possibilita afirmar que para um homem como ele, que estudou com mestres formados em Paris e conviveu com vários intelectuais em Bolonha, a citação de uma besta como esta era algo normal, que fazia parte do seu cotidiano.
 A partir de uma leitura superficial e sem nos atentarmos para o período no qual os bestiários foram escritos e compilados, poderíamos concluir que estes tinham como publico alvo os iletrados da sociedade.
Porém, se tomarmos frei Antônio de Lisboa/Pádua como membro do grupo daqueles que possuíam acesso aos estudos durante o medievo, constataremos que tais modelos de narrações maravilhosas não eram construídas somente para orientar àqueles que não estudavam, mas a todos os homens e mulheres que tivessem acesso tanto aos escritos, às pinturas, às esculturas ou às narrativas orais, como deveria acontecer nas pregações dos franciscanos.
Desta forma, entendemos que estas obras, direta ou indiretamente, quando eram utilizadas como exempla nas pregações, faziam parte da didática, inclusive nos estabelecimentos de ensino onde os medievais preparavam-se intelectualmente e não tinham como público alvo os ignorantes e sem instrução e sim todos os habitantes da Europa Medieval.

No caso dos franciscanos, esta narrativa estará presente na obra na qual estamos nos debruçando, que de certa forma terá papel fundamental nos primeiros tempos dos estudos dos menores. Não podemos perder de vista que o frade português foi o principal mestre para os franciscanos que implementaram o trabalho de combate aos cátaros e que esta pregação foi usada, inclusive, para dissuadir bispos e demais autoridades eclesiásticas que não zelavam por um modo de vida exemplar dentro do que a instituição entendia como correta.
Segundo Antônio, até as figuras mais odiadas da época tinham medo de tal monstro, porém somente os “pobrezinhos de espírito” eram capazes de destruir tal autoridade, pois pregavam uma reforma dos costumes e eram enviados do papado, o que davam a eles uma força tremenda.
Inclusive quando ele diz que o poderoso, tal como o basilisco, “corrompe até a própria atmosfera, ou seja, a vida dos religiosos, põe no céu da boca, e a língua passa-a para a terra”, podemos entender que esta figura prega e sua palavra, que parecia vir do céu, era ratificada pelos religiosos corrompidos, que a transmitiam para toda a população, como se fosse a lei.
As doninhas, ou seja, os religiosos humildes que neste caso podemos entender como os grupos de Irmãos Menores, que estão sendo utilizados pelo papado para corrigir os excessos de algumas autoridades eclesiásticas, entravam nas tocas destas bestas e as atacavam. Iam em suas comunidades e em suas paróquias e apoiados por aqueles que entendiam que era necessária uma mudança no modo de vida destas, apoiavam ainda dos pequenos, pois sabiam que suas vozes não seriam ouvidas por ninguém.
Constatamos, através desta citação, que o clima entre os franciscanos e as autoridades eclesiásticas de alto escalão, nos locais onde se pregava a reforma eclesiástica através da promoção dos cânones aprovados pelo Lateranense IV, não transcorria tranquilamente, já que podiam ser atacados e pressionados pelas autoridades religiosas locais, muitas vezes de forma violenta.
Desta forma entendemos que alguém, bispo ou arcebispo, não tinha uma conduta exemplar e dominava a região através do medo e para o povo em geral a única saída era a força que os menores tinham em sua pregação e em seu exemplo. Principalmente, quando o autor afirma que, ao serem “postos em grau superior” suas vozes, que anteriormente eram humildes, passam a alterar-se e adquirem um tom de ameaça.
Na tarefa de reformar a postura dos eclesiásticos estabelecidos a muito tempo nas regiões onde os franciscanos foram mandados para missão, podemos constatar que o frade português lançou mão dos Bestiários Medievais ao descrever e construir uma analogia a partir do basilisco.
O que Antônio queria combater em seu sermão era a postura violenta e dominadora das autoridades eclesiásticas de algumas regiões, que além de serem tiranas, não atentavam para as orientações da Sé Romana, constantes principalmente nos cânones do IV Concílio de Latrão. Quando os frades adentravam algumas localidades e paróquias portando a autorização papal, para que fossem recebidos pelos prelados e pudessem pregar, tornavam-se os únicos capazes de condenar e denunciar a estas autoridades, sem sofrer sansão oficial. O que não quer dizer que não fossem hostilizados.

Vemos que quando fala do basilisco, frei Antônio procura mostrar que as autoridades espirituais locais com as suas práticas não poderiam representar a voz de Deus e sim a do Diabo. Como tudo que esta besta tocava, mordia e tinha contato morria ou contaminava aos outros, estes eram os responsáveis pela crise e ataque dos grupos contestatórios da qual a Igreja era vítima nestas localidades.
Desta forma ele conclamou aos prelados e pregadores a que ensinassem a “ciência da doutrina”, corrigissem aos que tinham seus governo eclesiástico baseado no terror, fossem mansos e misericordiosos e mantivessem fortes os vínculos da disciplina. Tal apelo tinha como objetivo principal tornar os membros da Igreja Romana pessoas com as quais os fiéis pudessem encontrar “aquela abundante justiça, a que se refere o Senhor no Evangelho”.

Referências Bibliográficas:
CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Introdução a Obra Antoniana. Lisboa: Casa da Moeda, 1968.
MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestiário Medieval. Madrid: Edições Siruela, 1986.
PELLEGRINI, Luigi. Los Cuadros y Tiempos de la Expansion de la Ordem. In: Francisco de Asís y el primer siglo de historia franciscana. Oñati: Editorial Franciscana Arantzazu, 1999. p. 194-205.
REMA, Henrique Pinto. Santo Antônio: Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1987.
RIGON, Antonio. Hermanos Menoresy Sociedades Locales. In: Francisco de Asís y el primer siglo de historia franciscana. Oñati: Editorial Franciscana Arantzazu, 1999. p. 289-300.




[1] Do hebr. = senhor. Nome frequente dado às divindades nas regiões sírio-fenícias nos tempos do AT, ligado geralmente a um lugar de que Baal era dono, p.ex., “Baal-Fegor”. Tais divindades constituíam tentação forte para os Hebreus quando ocuparam a Palestina, pelo que foram fortemente combatidas pelos profetas de Israel, especialmente por Elias (2Rs 18). Consulta feita ao site www.agencia.ecclesia. pt/catolicopedia.
[2] De acordo com Ignacio Malaxecheberría, “Pierre de Beauvais, ou Pierre le Picard, como lo llama el P. Cahier, fue probablemente clérigo, y gozo de la protección de dos miembros, al menos, de la família de Dreux: Felipe, obispo de Beauvais, impulsor de las letras em su corte episcopal, y su Hermano Roberto. Este bestiário cierra, em todo caso, la serie de los “bestiarios franceses tradicionales”; no tendrá mas continuación que el Bestiaire d’amour de RF, impregnado ya de espíritu laico. Para la vesión corta, sigo la adaptación de Bianciotto, más fiable que la edición Mermier; para la versión larga, solo existe la vieja edición del P. Cahier”.
[3] Segundo Ignacio Malaxecheberría, “de bestiis et aliis rebus es uma compilación híbrida reeditada em la Patrologia latina hace más de um siglo. Los cuatro libros que comprende la obra fuerom respectivamente atribuídos por los benedictinos a Hugo de Folieto (Aviarium, o libro I), Enrique de Gante y Guillelmus Peraldus (III y IV). Pero la segunda parte ha sido erroneamente atribuída a Hugo de Saint Victor, y la autoria sigue siendo problemática”.